Archive for 4 de fevereiro de 2010

corpos políticos

fevereiro 4, 2010

Corpos políticos são aqueles capazes de se expor. Aqueles feitos de movimento, carregados de transitoriedade, abertos ao conflito. É preciso deixar que o dissenso se pronuncie nesta cidade de linhas retas. É preciso aprender a ser impreciso em Belo Horizonte, com o perdão da visita ao trocadilho do poeta. Em nossa cidade, não se pode navegar. Tudo é cada vez mais preciso. É difícil reconhecer esse horizonte que vem sendo imposto na cidade que era nossa. Mas será que ela foi nossa? Há ainda praças em Belo Horizonte? Se não há mais, se nunca houve, como serão/foram feitos os encontros de idéias diferentes? Para aonde eles vão/foram? Belo Horizonte é, então, uma cidade em que as ruas são vias de acesso aos shoppings? Esses, também são sempre iguais e feitos das mesmas idéias: a abundância, a oferta, a falta de procura, as raridades dos encontros, o mesmo. Já as praias sempre têm essa vocação ineliminável de serem democráticas, a despeito do que se insiste em fazer delas. E nossa praia é feita de corpos. É feita de um mar de pluralidades. É feita de política. Uma praia é sempre uma praça, um espaço aberto convidando às manifestações de quaisquer naturezas. Nossa praia não se importa com nomes próprios, não precisa de nomes. É feita de gente. De alegrias e sons, de forças que descobriram a cidade. Ocupamos, finalmente, a cidade. Nossa praia é maior (e cada vez maior) que essa cidade militarizada e panóptica que fizeram de Belo Horizonte. Essa cidade feita de grades, de câmeras, de cercas incontáveis que insistem em privatizar os espaços públicos –, nela a praça seria só um cenário? Os parques seriam só para quem tem carro (afinal, em Belo Horizonte, não se pode andar de bicicleta nos parques, que não contam com bicicletários)? Querem a praça vazia? O espaço público, sem o coletivo? O parque cercado? A rua vazia? Querem sim, mas os corpos não deixam. Não deixam! Pois esses são corpos políticos. São feitos de movimento, é impossível controlá-los. Eles dobram a vida, multiplicam-se.

Bicicletai!

fevereiro 4, 2010

Um dias desses, evidentemente, tudo há de dar certo, os automóveis se extinguirão e a superfície da terra será povoada apenas por bicicletas. Alguns carros, ônibus e caminhões serão expostos nos museus, feito mamutes, guilhotinas e outros monstros findos, para divertir a criançada e alertar os adultos: que o horror jamais se repita. Sobre selins acolchoados, seremos felizes para sempre.
É inegável a simpatia das bicicletas. Máquina desengonçada: se parada, destrambelha-se como um albatroz em terra, mas ao impulso dos pedais, projeta-se como uma flecha, esguia, impoluta e silenciosa. Bicicletas, ninguém pode negar, são irmãs dos guarda-chuvas, primas das girafas e parentes distantes dos abacaxis (não me peça para explicar, foi uma idéia que tive agora).
Durante todo o século XX, muitos artistas aproveitaram-se de seus encantos. É pedalando que vemos quase todo o tempo monsieur Hulot, personagem do filme Meu Tio, utopia lírica de Jacques Tati. Marceu Duchamp, depois haver exposto um mictório no museu, enfiou uma roda de bicicleta num banco de madeira e deixou as velhas noções sobre arte – literalmente – de pernas pro ar.
É impensável um facínora de bicicleta, inconcebível um ditador pedalando. As “máquinas da paz”, como as chamou Vinícius de Moraes, em sua Balada das meninas de bicicleta, são muito mais afeitas aos suaves cuidados das moças: “Bicicletai, meninada!/ Aos ventos do Arpoador/ Solta a flâmula agitada/Das cabeleiras em flor”.
As bicicletas são um indício de civilização. Recomendadas por ecologistas, urbanistas, cardiologistas e artistas, têm logo de entrar na agenda política. Ainda não vi nenhum candidato expor, no horário eleitoral, seu projeto nacional de bicicletização. Se aparecer algum, ganhará de imediato meu apoio.
Se Deus voltasse à terra e dissesse, “me mostrem aí o que vocês fizeram”, teríamos de levá-lo imediatamente a Amsterdam, para um passeio ciclístico, em torno daqueles belíssimos canais. Ou então ao Rio de Janeiro. Pegaríamos Deus no Santos Dummont (vindo do céu, é de se supor que chegará de avião) e O colocaríamos na garupa. Cruzaríamos todo o aterro, pedalando sem pressa, sob o sol ameno das quatro e meia da tarde. Passaríamos pela estátua de Drummond em Copacabana, veríamos as garotas saírem do mar em Ipanema e terminaríamos o passeio no Leblon, com um mergulho no mar e um suco de melancia, no exato momento do sol se pôr. Se Deus tiver um pingo de sensibilidade, estaremos todos salvos.